Os I's do Futuro - Assif Osman

Como Instituições e Infra-estruturas podem ajudar a erguer um novo Moçambique Assif Osman Os I ’S do Futuro

Os Is do Futuro Como Instituições e Infra-estruturas podem ajudar a erguer um novo Moçambique © 2025, Assif Osman Coordenação Editorial: Fundação Carlos Morgado Capa e Paginação: Ruben Morgado Imagem da Capa: rawpixel.com/Freepik Impressão e Acabamentos: Kadimah Print Global Tiragem: 1000 exemplares 1ª Edição, Junho de 2025 Nº de Registo: 11837/RL/INICC/2025 ISBN: 978-989-36052-6-4 Este livro usa as famílias tipográficas Good Times, criada por Raymond Larabie, e CRIMSON TEXT, criada por Sebastian Kosch, sob licença da Adobe Fonts e Open Font License (OFL), respectivamente, permitindo o uso comercial e modificação sem restrições. Fundação Carlos Morgado Av. do Zimbabwe 688 | Maputo | Moçambique info@carlosmorgado.org | carlosmorgado.org Todos os direitos reservados. Este livro não pode ser reproduzido, no todo ou em parte, por qualquer processo mecânico, fotográfico, electrónico ou por meio de gravação, nem ser introduzido numa base de dados, difundido ou em qualquer forma copiado para o uso público ou privado, além do uso legal como breve citação em artigos e críticas, sem prévia autorização, por escrito, da editora.

ÍndIce Prefácio Os Is do Assif Osman 11 Introdução 13 PARTE I Instituições: o alicerce invisível 17 Capítulo 1 O poder das instituições 19 1.1 Instituições: O que são? 20 1.2 Instituições inclusivas vs. extractivas 22 1.3 O impacto das instituições no desenvolvimento 25 1.4 Ciclos viciosos e virtuosos: o ciclo das instituições 28 1.5 Por que as instituições importam para Moçambique 30 Resumo do Capítulo 1 32 Capítulo 2 Moçambique: um diagnóstico institucional 33 2.1 As origens: independência, urgência e centralização 34 2.2 Transições e reformas: entre rupturas e continuidades 37 2.3 As marcas do presente: avanços, bloqueios e ambivalências 39 2.4 Desafios estruturais e armadilhas institucionais 41 2.5 A urgência de repensar: sem negar o passado, nem temer o futuro 44 Resumo do Capítulo 2 46 Capítulo 3 Caminhos para instituições mais fortes 47 3.1 Fortalecer o que já existe: reformar por dentro 48

3.2 Mudar estruturas e lógicas: reformar por fora 50 3.3 Activar a cidadania: o papel do povo nas instituições 52 3.4 Lições do mundo: instituições que inspiram 54 3.5 Síntese final da Parte I: um compromisso colectivo com instituições 58 Resumo do Capítulo 3 60 PARTE II Infra-estruturas: o corpo visível 61 Capítulo 4 A importância estratégica das infra-estruturas 63 4.1 Infra-estruturas: o que são e por que importam? 64 4.2 Infra-estruturas como motor económico e integrador territorial 65 4.3 Infra-estruturas e igualdade de oportunidades 67 4.4 Infra-estruturas e soberania nacional 68 4.5 Infra-estruturas como compromisso com o futuro 69 Resumo do Capítulo 4 71 Capítulo 5 O estado das infra-estruturas em Moçambique 73 5.1 Diagnóstico: estradas, energia, água, telecomunicações, escolas, saúde 74 5.2 Avanços e limitações 76 5.3 Financiamento e prioridades estratégicas 78 5.4 Desigualdade territorial e vulnerabilidade climática 79 5.5 Lições aprendidas e armadilhas a evitar 81 Resumo do Capítulo 5 83 Capítulo 6 Infra-estruturas do futuro: que caminho seguir? 85 6.1 Onde investir e porquê: critérios de escolha 86 6.2 Sustentabilidade, manutenção e governação de projectos 88 6.3 Como financiar o investimento em infra-estruturas 90 6.4 A dimensão digital e o salto tecnológico possível 93 6.5 Síntese final da Parte II: Construir para durar, integrar e transformar 95 Resumo do Capítulo 6 97 PARTE III O Efeito multiplicador: quando os dois Is se reforçam 99 Capítulo 7 A sinergia entre boas instituições e boas infraestruturas 101 7.1 Por que razão a combinação é mais poderosa do que a soma das partes 102 7.2 Quando uma falha neutraliza a outra: riscos da desconexão 103 7.3 A importância da coordenação interinstitucional e da visão integrada 105 7.4 Conclusão: para um ecossistema de desenvolvimento coerente 107 Resumo do Capítulo 7 109

Capítulo 8 Uma agenda para Moçambique 111 8.1 Resiliência institucional e adaptabilidade em tempos de mudança 112 8.2 Visão estratégica e compromisso com o longo prazo 114 8.3 Liderança transformadora e participação cidadã 116 8.4 Síntese final da Parte III: dois “I’s” como alicerces de um novo ciclo 117 Resumo do Capítulo 8 119 Conclusão Geral Um novo contrato de desenvolvimento para Moçambique 121 Posfácio Nem tudo cabe em dois “I’s” 123 Agradecimentos 125

PREFÁCIO Os Is do Assif Osman Assif Osman é um jovem que desponta e aponta para o futuro, num contexto histórico em que o País se encontra, no qual todos os jovens são convocados a pensar e a propor caminhos para a sua reconstrução, em novos paradigmas. O título que escolhe sugere um jogo entre o presente e o futuro, o que desperta em nós expectativas e esperanças de que esta geração de jovens possa identificar propostas que finalmente ponham o País em movimento. O simples “I” acoplado ao futuro, mesmo antes de entrar no texto, sugere que o “I do futuro” representa o Imediato que funcionará como motor de arranque rumo a um futuro diferente. Na realidade, essa percepção de leitura não sai defraudada quando o autor identifica o “I” como Instituições e Infraestruturas. Sem ser um manifesto — longe disso — Assif manifesta-se claramente, mas de forma implícita e nas entrelinhas, ao afirmar que as Instituições e as Infraestruturas constituem factores de estabilidade e contribuem para o desenvolvimento económico e

ASSIF OSMAN 12 | social de Moçambique. E explica porquê, e indica caminhos. Mas o texto também não é um ensaio científico que procure, de forma metódica, identificar e analisar os factores que inibem o avanço do País, nem sugerir hipóteses de saída para o estado pantanoso em que nos encontramos. Sente-se que o autor produziu o texto dominado por sentimentos de pulsão incontida. Nota-se uma ansiedade no discurso, pelo ritmo; e nota-se também que Assif não pôs de parte o sentido de cidadania e patriotismo, evitando resvalar para o panfleto. Movese num espaço de equilíbrio calculado, procurando, inclusive, não assumir posições que configurem alinhamento ideológico. Nas notas exemplificativas, circula por modelos de regimes antagónicos, demonstrando que os seus “Is” podem funcionar em contextos com opções de governação e sistemas completamente díspares, mas ainda assim gerar resultados visíveis: instituições fortes e políticas estratégicas sobre infraestruturas válidas para o desenvolvimento. É uma leitura corajosa e isenta, num mundo maniqueísta, dividido entre bons e maus. Este livro surge num momento oportuno. Moçambique busca um novopercurso, cinquentaanos após a conquistada sua independência política. O texto aponta para dois destinatários distintos: para a elite política, que detém as rédeas do poder em todo o seu espectro (oposições incluídas), para que se olhem ao espelho e reconheçam que, em cinquenta anos, com as suas instituições e infraestruturas, não lograram alcançar os objectivos traçados pelos libertadores, congregados numa Frente de Libertação. Mas também convoca os jovens nascidos e criados após a independência, mostrando-lhes que não basta identificar os erros dos seus pais, reclamar e permanecer inertes. O que é preciso é que ganhem consciência de que chegará a vez dessas gerações receberem o testemunho — com a consciência de que devem fazer diferente. O Homem é a peça fundamental para,

OS I’S DO FUTURO 13 | nessa encruzilhada, saber analisar as hipóteses de prosseguir viagem de forma segura, sendo capaz de avaliar adequadamente os factores de risco e de mudar de rumo, se for caso disso. O mote está dado. Parabéns, Assif! Maputo, aos 14 de Março de 2025 Lourenço do Rosário

INTRODUÇÃO ESTE LIVRO NASCE de uma inquietação e de uma esperança. A inquietação resulta de um paradoxo que há muito desafia quem observa Moçambique com atenção: como é possível que um país tão rico em recursos naturais continue a ser tão pobre em resultados? Como explicar que, apesar das promessas de crescimento, continuemos a enfrentar níveis persistentes de pobreza, desigualdade e fragilidade institucional? A esperança, por sua vez, vem da convicção de que é possível fazer diferente — e melhor. Mas para isso, é preciso ir além das explicações fáceis e dos culpados de ocasião. É preciso olhar de frente para os alicerces do nosso modelo de desenvolvimento, reconhecer o que funciona, corrigir o que bloqueia e construir com visão aquilo que ainda falta. Este não é um livro escrito com o dedo em riste. É um livro escrito com empatia histórica, consciente de que nenhum país se constrói em linha recta, e de que muitos dos bloqueios actuais têm raízes profundas, em contextos adversos e decisões difíceis. O nosso ponto de partida não é o julgamento, mas sim o compromisso com o futuro. Olhamos para o passado apenas para compreender melhor o presente — e, a partir daí, propor caminhos realistas para avançar.

ASSIF OSMAN 16 | A tese central é simples, mas exigente: o progresso de Moçambique depende, mais do que de qualquer outro factor, de dois pilares estruturais — os dois “I’s” do desenvolvimento: as Instituições e as Infra-estruturas. Quando estão ausentes ou fragilizadas, o país paralisa ou tropeça. Quando existem, mas operam isoladamente, os seus efeitos são limitados. Mas quando são fortes e actuam de forma articulada, geram um efeito multiplicador que transforma países. Écombasenessaconvicçãoqueestruturámoseste livroemtrêsPartes. A Parte I, composta pelos capítulos 1 a 3, analisa o papel das instituições: como moldam o comportamento colectivo, qual a sua trajectória em Moçambique e que reformas são necessárias para as tornar mais inclusivas, eficazes e resilientes. A Parte II, que inclui os capítulos 4 a 6, trata das infra-estruturas: o que representam, qual o seu estado actual no país, e como podem ser planeadas e financiadas para gerar impacto duradouro. Finalmente, a Parte III, abrangendo os capítulos 7 e 8, reflecte sobre a importância da sua combinação: como instituições e infra-estruturas se reforçam mutuamente — e por que razão é nesse ponto de intersecção que reside a chave para um novo ciclo de desenvolvimento. Este é um livro para decisores políticos que pensam o país a médio e longo prazo; para servidores públicos que lutam diariamente por fazer melhor com os meios disponíveis; para empresários e investidores que acreditam no potencial moçambicano; para a comunidade académica e científica que estuda e propõe soluções; para a sociedade civil que exige mais justiça e participação; e para os nossos parceiros internacionais que partilham connosco o desejo de um futuro mais estável e promissor. E, sobretudo, é um livro para todos os moçambicanos que se recusam a desistir da ideia de um futuro melhor. A todos eles deixamos um convite — e um apelo: o de construirmos juntos um país onde o futuro não seja apenas uma esperança vaga, mas uma obra colectiva, planeada, pensada e posta em marcha com ambição e determinação.

PARTE I Instituições: o alicerce invisível “O cajado que nos guia é mais forte do que a mão que o segura.” — Provérbio makua (Moçambique) NENHUM EDIFÍCIO SE SUSTENTA sem uma base sólida. Nenhum país avança de forma duradoura sem instituições fortes. Nesta primeira parte do livro, olhamos para o alicerce invisível do progresso: as instituições. Invisível, porque não se vê num mapa nem se mede com fita métrica; mas absolutamente determinante, porque condiciona tudo o resto— das decisões económicas à justiça social, da estabilidade política à confiança entre cidadãos. Começamos por tentar compreender por que razão as instituições são tão importantes para o desenvolvimento, e o que distingue as que promovem inclusão daquelas que facilitam a exploração (Capítulo 1). A seguir, voltamo-nos para o caso de Moçambique:

ASSIF OSMAN 18 | traçamos um diagnóstico realista da evolução institucional do país, com os seus avanços e os seus bloqueios, sempre com uma leitura histórica que procura compreender antes de julgar (Capítulo 2). Por fim, propomos caminhos possíveis para reforçar as instituições moçambicanas, com acções concretas, inspiração internacional e foco em soluções viáveis (Capítulo 3). Esta parte não é um lamento sobre o que falta. É um convite a pensar no que pode ser feito — e o que depende de nós. Porque não há desenvolvimento sustentável sem instituições que suportem, protejam e tornem possível o futuro que desejamos.

Capítulo 1 O poder das instituições POR DETRÁS DO SUCESSO ou fracasso das nações, por detrás da prosperidade ou da pobreza, há quase sempre uma força invisível a operar: as instituições. Elas não aparecem nos noticiários com tanta frequência quanto os indicadores económicos ou os conflitos políticos, mas estão sempre presentes, moldando comportamentos, decisões e trajectórias colectivas. São as instituições que criam o ambiente em que se decide investir ou desistir, participar ou recuar, construir ou explorar. Neste capítulo, procuramos lançar as bases do argumento central deste livro: que o desenvolvimento sustentável de Moçambique — como de qualquer outro país — depende profundamente da qualidade das suas instituições. Trata-se do primeiro dos dois pilares fundamentais que analisaremos nesta obra: as instituições e, mais adiante, as infra-estruturas. Ambos são necessários, ambos se reforçam mutuamente — e nenhum é suficiente por si só. Começamos por clarificar o que se entende por “instituições” (1.1),

ASSIF OSMAN 20 | distinguindo o sentido mais restrito do termo (órgãos concretos como tribunais ou ministérios) do seu sentido mais amplo (as regras do jogo que organizam a vida colectiva). A seguir, exploramos a diferença entre instituições inclusivas e extractivas (1.2), e como cada uma dessas lógicas institucionais influencia os incentivos e o potencial de crescimento de uma sociedade. Abordamos também o impacto das instituições no desenvolvimento (1.3), com exemplos históricos que ilustramo seu papel estruturante, e mostramos como as instituições fracas tendem a reproduzir-se através de ciclos viciosos — mas também como é possível entrar num ciclo virtuoso de reforço institucional (1.4). Por fim, olhamos para Moçambique (1.5), reconhecendo os avanços e as limitações da sua trajectória institucional e lançando o convite para um olhar mais exigente, mais crítico e mais construtivo sobre o papel das instituições no nosso futuro colectivo. 1.1 Instituições: O que são? QUANDO SE FALA DE INSTITUIÇÕES, muita gente pensa imediatamente em edifícios públicos, tribunais, ministérios ou até bancos centrais. Esta é apenas a definição mais restrita do termo. No sentido mais lato, as instituições são muito mais do que estruturas físicas: são o conjunto de regras formais e informais que regulam a vida em sociedade. Essas regras dizem-nos o que é permitido, o que é proibido e o que é esperado. Estão presentes quando um agricultor assina um contrato

OS I’S DO FUTURO 21 | de fornecimento, quando um juiz aplica uma lei, ou quando uma empresa decide investir com base na confiança de que os seus direitos serão respeitados. As instituições incluem, por exemplo, a Constituição de um país, as leis que regem os negócios, os tribunais que as fazem cumprir e até os costumes sociais que moldam comportamentos. Há instituições formais — como um código penal — e informais — como a prática de dar prioridade a idosos numa fila, mesmo sem lei que o imponha. Empaíses comoMoçambique, importa destacar ainda as instituições tradicionais, que fazem parte do tecido informal, mas que têm grande legitimidade e influência em muitas comunidades. Estas incluem lideranças comunitárias, conselhos de anciãos e normas consuetudinárias que regulam conflitos, acesso à terra, rituais sociais, ou até mecanismos de poupança como o Xitique. Apesar de nem sempre codificadas em leis, estas instituições desempenham um papel crucial na organização da vida colectiva. Uma boa forma de as entender é pensar nelas como o “campo e as regras do jogo” onde a vida económica e política acontece. Sem um campo definido, ou com regras que mudam constantemente, o jogo não se joga — ou joga-se mal, com batota, desconfiança e violência. É por isso que as instituições são essenciais para o desenvolvimento. Onde elas são previsíveis, transparentes e justas, as pessoas têm confiança para trabalhar, investir, criar. Onde são fracas, manipuláveis ou imprevisíveis, reina o medo, a corrupção e a estagnação. Como refere o economista Douglass North1, “instituições são as regras do jogo numa sociedade”. E são essas regras que, ao longo do tempo, moldam o desempenho económico, político e até cultural de um país. 1 Douglass Cecil North (Cambridge, 05/11/1920 – Benzonia, 23/11/2015) foi um economista norte-americano conhecido pelo seu trabalho na nova economia institucional.

ASSIF OSMAN 22 | Moçambique, como veremos nos próximos capítulos, tem vindo a construir várias dessas regras ao longo das últimas décadas — mas nemsempre foramsuficientemente fortes, inclusivas oueficazes para libertar todo o seu potencial. Este livro procura defender a ideia de que o reforço das instituições é um dos alicerces fundamentais para garantir o progresso. Por isso, lança um convite claro: olhemos com atenção para as nossas instituições — para entendê-las, repensá-las e, sobretudo, fortalecê-las. 1.2 Instituições inclusivas vs. extractivas NEM TODAS AS INSTITUIÇÕES SÃO IGUAIS — e nem todas servem ao bem comum. Uma das contribuições mais influentes do pensamento económico contemporâneo foi a distinção entre instituições inclusivas e instituições extractivas, tal como desenvolvida por Daron Acemoğlu e James Robinson2. Esta distinção ajuda a perceber por que é que alguns países prosperam e outros permanecem presos à pobreza, apesar de terem acesso a recursos, conhecimento ou mesmo ajuda externa. Segundo esses autores, instituições inclusivas são aquelas que criam incentivos para a participação ampla da população na vida 2 Daron Acemoğlu (Istambul, 1967) é professor de Economia no Massachusetts Institute of Technology (MIT), e James A. Robinson (Salisbury, 1960) é professor de Ciência Política na Universidade de Chicago. Ambos são reconhecidos internacionalmente pelos seus contributos para o estudo das instituições e do desenvolvimento económico. Em conjunto, publicaram a obra Porque Falham as Nações: As Origens do Poder, da Prosperidade e da Pobreza (2012), na qual defendem que o desenvolvimento sustentável de um país depende, em grande medida, da solidez e inclusão das suas instituições políticas e económicas.

OS I’S DO FUTURO 23 | económica e política. São abertas, previsíveis e justas. Permitem que as pessoas invistam, inovem, trabalhem e votem com a confiança de que os seus direitos serão respeitados e protegidos. Têm regras claras e iguais para todos, promovem a concorrência, garantem o direito à propriedade e o funcionamento imparcial da justiça. Países com instituições deste tipo tendem a alcançar níveis elevados de desenvolvimento, precisamente porque desbloqueiam o talento e a energia de toda a sociedade. Embora este livro parta da distinção proposta por Acemoglu e Robinson, não o faz como adesão acrítica a um único modelo político ou económico. Cada sociedade tem o direito — e o dever — de encontrar formas próprias de organizar a sua vida colectiva, inspirando-se nas boas práticas globais, mas respeitando a sua história, cultura e circunstâncias. O essencial não está na forma institucional específica, mas nos seus princípios estruturantes: previsibilidade, responsabilidade, justiça e confiança. As pessoas precisam de acreditar que as regras do jogo valem para todos — e que as instituições existem para servir, e não para dominar. Quando esse princípio se inverte — e as instituições passam a servir interesses restritos em vez do bem comum —, entramos no domínio das chamadas instituições extractivas. Estas são desenhadas para beneficiar uma minoria à custa da maioria. Concentram o poder político e económico num pequeno grupo — seja ele uma elite política, uma oligarquia económica ou uma combinação de ambos. São caracterizadas por regras opacas, instabilidade jurídica, corrupção, clientelismo e repressão. Em vez de fomentar a criação de riqueza de forma ampla, extraem recursos da sociedade para servir interesses particulares. E fazem-no de forma sistemática e estruturada, muitas vezes escondida sob a aparência de normalidade institucional. O problema central destas instituições não é apenas a injustiça que provocam, mas o facto de bloquearem os motores do crescimento:

ASSIF OSMAN 24 | o investimento, a inovação, a confiança, a cooperação. Numa economia onde só alguns beneficiam, muitos outros deixam de acreditar que vale a pena tentar. E uma sociedade onde poucos mandam e a maioria obedece tende a tornar-se frágil, instável e até violenta. É justo reconhecer que Moçambique, com apenas cinquenta anos de existência como nação independente, não teve ainda tempo histórico suficiente para consolidar instituições maduras e plenamente inclusivas. Muitos dos países que hoje admiramos levaramdécadas—oumesmo séculos—a construir os seus sistemas institucionais. No entanto, num mundo em aceleração constante, não nos podemos dar ao luxo de esperar tanto. Precisamos de aprender com os outros, evitar erros já cometidos por outros povos e, com realismo e ousadia, encontrar formas de “saltar etapas”. A construção de instituições sólidas não precisa de repetir o caminho dos outros, mas sim inspirar-se nele com inteligência estratégica. Importa sublinhar que as instituições extractivas não nascem do acaso. São criadas, mantidas e muitas vezes refinadas pelas elites que delas beneficiam. E, justamente por isso, não se reformam sozinhas: exigem vontade política, pressão social e uma visão de país mais ampla do que os interesses imediatos de quem governa. Ao longo deste livro, partiremos desta distinção entre instituições inclusivas e extractivas como lente fundamental para compreender a história e o presente de Moçambique. Veremos como certos mecanismos institucionais funcionam para incluir — e outros, infelizmente, para excluir. E veremos também que mudar este quadro não é impossível: mas requer coragem, persistência e uma cidadania mais consciente do poder transformador das instituições.

OS I’S DO FUTURO 25 | 1.3 O impacto das instituições no desenvolvimento ODESENVOLVIMENTODEUMPAÍS depende demuitos factores: recursos naturais, geografia, clima, investimento estrangeiro, comércio, educação. Mas, por trás de todos esses elementos, há um fio invisível que os liga e que, muitas vezes, determina se funcionam ou não: as instituições. São as instituições que definem se o potencial de um país é desbloqueado ou desperdiçado. Um país pode ter petróleo, minerais ou terras férteis, mas, sem regras claras, justiça funcional, direitos protegidos e incentivos adequados, esses recursos podem transformar-se em fonte de conflito, corrupção ou dependência. Por outro lado, um país com poucos recursos naturais pode prosperar se tiver instituições que promovam o mérito, a estabilidade e a criatividade. A história fornece-nos inúmeros exemplos. A Coreia do Sul e a Coreia do Norte partilham a mesma geografia, cultura e língua, mas seguiram caminhos institucionais radicalmente diferentes após a década de 1950 — e os seus resultados económicos e sociais não podiam ser mais contrastantes. O mesmo pode ser dito sobre a Alemanha Ocidental e Oriental no período da Guerra Fria. Em ambos os casos, foram as instituições — e não o clima, a etnia ou o solo — que explicaram a diferença. Estes exemplos não devem, contudo, levar-nos à conclusão apressada de que apenas em democracias liberais é possível alcançar o progresso. Países como Singapura, China ou Vietname — com modelos políticos mais centralizados, mas baseados em meritocracia, planeamento estratégico, estabilidade institucional e forte mobilização estatal — demonstram que o essencial está na qualidade e coerência das instituições, e não necessariamente no tipo

ASSIF OSMAN 26 | de regime. O que verdadeiramente importa é se as suas instituições promovem inclusão, confiança, responsabilidade e resultados ao serviço do bem comum. Alguns destes exemplos serão retomados e discutidos com maior detalhe no Capítulo 3, em particular na secção 3.4. Aliás, é importante reconhecer que, na história de muitos países hoje admirados pelas suas instituições fortes e democráticas, houve momentos de centralização e liderança autoritária que desempenharam um papel estruturante. A França, por exemplo, deve parte significativa da consolidação do seu Estado moderno ao período napoleónico3, que, apesar de autoritário, lançou reformas institucionais profundas e duradouras. Casos semelhantes existem noutros contextos, sob figuras que a história designa como déspotas esclarecidos — líderes que, mesmo fora do modelo democrático liberal, investiram na construção de instituições eficazes, na modernização do Estado e na criação de condições para um desenvolvimento posterior mais inclusivo. Não se trata de glorificar o autoritarismo, mas de reconhecer que os percursos institucionais são complexos, e que, por vezes, é a estabilidade e a visão de longo prazo que abrem caminho à pluralidade. As instituições moldam incentivos: definem se compensa trabalhar, investir, inovar ou simplesmente sobreviver. Quando os direitos de propriedade são protegidos, quando os contratos são cumpridos, quando a justiça é imparcial e os impostos são razoáveis, os cidadãos sentem-se mais seguros para arriscar, empreender e contribuir. Em contextos onde isso não acontece, impera a incerteza — e a energia social tende a virar-se para a sobrevivência, o oportunismo ou a fuga. 3 Napoleão Bonaparte (Ajaccio, 15/08/1769 – Longwood, 05/05/1821) foi estadista e líder militar francês que ganhou destaque durante a Revolução Francesa e liderou várias campanhas militares de sucesso durante as Guerras Revolucionárias Francesas. O seu legado político e cultural perdura como um dos líderes mais célebres e controversos da história da humanidade.

OS I’S DO FUTURO 27 | As instituições também são decisivas para a confiança social. Sem confiança, não há cooperação. Sem cooperação, não há crescimento sustentado. Quando as pessoas acreditam que o sistema funciona, que as regras são iguais para todos e que os seus esforços serão recompensados, estão mais dispostas a respeitar a lei, a pagar impostos, a participar na vida pública. Quando sentemque o sistema é injusto ou manipulado, retiram-se, resistem ou revoltam-se. Além disso, as instituições influenciam o tipo de liderança que se forma numpaís. Sistemas institucionais saudáveis tendema produzir líderes mais responsáveis, sujeitos a escrutínio e mais atentos ao interesse público. Sistemas frágeis ou manipuláveis, pelo contrário, favorecem líderes autoritários, oportunistas ou populistas. O impacto das instituições não é apenas económico. Afecta também a educação, a saúde, a segurança, o ambiente, a cultura. Uma escola bem equipada, mas inserida num sistema corrupto ou ineficiente dificilmente produz bons resultados. Um hospital com médicos competentes, mas sem regras claras de gestão dificilmente garante cuidados de qualidade. A força ou fraqueza institucional está presente em quase todos os domínios da vida colectiva. Compreender esta centralidade das instituições é dar um passo decisivo para pensar o desenvolvimento de forma mais profunda. Não basta importar modelos, aprovar leis ou construir infraestruturas. É preciso garantir que as instituições que regem o funcionamento do país são sólidas, confiáveis e orientadas para o bem comum.

ASSIF OSMAN 28 | 1.4 Ciclos viciosos e virtuosos: o ciclo das instituições AS INSTITUIÇÕES FRACAS não apenas impedem o progresso — tendem também a reproduzir-se. Criam um ciclo vicioso onde a fragilidade institucional alimenta comportamentos oportunistas, e esses comportamentos, por sua vez, enfraquecem ainda mais o tecido institucional. Este ciclo pode prolongar-se durante décadas, dificultando reformas e frustrando sucessivas tentativas de desenvolvimento. Num sistema institucional frágil, o poder tende a concentrar-se num pequeno grupo — político, económico ou administrativo — que se organiza para conservar os seus privilégios. As regras do jogo são moldadas para servir os interesses desse grupo, mesmo que formalmente pareçam neutras ou universais. Os mecanismos de fiscalização são capturados, os tribunais tornam-se complacentes, os parlamentos perdem relevância, os media são pressionados ou cooptados, e a sociedade civil é desmobilizada ou marginalizada. Neste ambiente, o mérito perde valor. A lealdade política, os vínculos pessoais e as redes de influência tornam-se critérios mais determinantes do que a competência. A corrupção deixa de ser um desvio pontual e transforma-se num método de gestão, um modo de operar. A administração pública funciona não para servir o bem comum, mas para distribuir favores e manter equilíbrios internos de poder. O cidadão comum adapta-se — sobrevive, contorna, desconfia — mas raramente acredita no sistema. Este ciclo vicioso é reforçado por um fenómeno que pode parecer paradoxal: quanto mais fracas são as instituições, mais resistência oferecem à mudança. Quem está no topo teme perder o controlo, e quem está em baixo sente que nada pode ser feito. Reformar tornase perigoso para uns, ilusório para outros. A inércia institucional

OS I’S DO FUTURO 29 | instala-se. E, gradualmente, normaliza-se a ideia de que “as coisas são mesmo assim”. Mas nemtodos os ciclos institucionais sãoviciosos. DaronAcemoglu e James Robinson explicam também que as instituições fortes tendem a reforçar-se a si próprias ao longo do tempo. Chamam a isso o ciclo virtuoso do desenvolvimento institucional. Quando um país adopta regras claras, promove a inclusão política e económica e estabelece mecanismos de responsabilização, cria-se um ambiente em que os bons comportamentos institucionais são recompensados e perpetuados. Num ciclo virtuoso, os cidadãos confiam mais nas instituições e participammais activamente na vida pública. As regras passam a ser respeitadas não apenas por medo de sanção, mas por convicção. A estabilidade gera investimento. O investimento gera oportunidades. A prosperidade alarga a base de apoio à inclusão. E a inclusão, por sua vez, reforça as instituições que a tornarampossível. Há um efeito cumulativo positivo, em que cada pequena melhoria institucional facilita novos avanços. Países que hoje são referência em termos de boa governação e desenvolvimento não chegaram onde estão apenas por decisões técnicas acertadas. Foram construindo ciclos virtuosos ao longo do tempo, com avanços e recuos, mas com uma orientação consistente para o reforço institucional. Moçambique tem a oportunidade de interromper o seu ciclo vicioso e iniciar um caminho virtuoso. Como veremos no capítulo 2, a situação actual é complexa, mas não é imutável. Romper o ciclo exige mais do que vontade individual: exige lucidez colectiva, liderança com visão de longo prazo e, sobretudo, coragem política. Os exemplos existem. As lições estão disponíveis. Falta apenas a decisão de romper com o que bloqueia — e comprometer-se com o que liberta.

ASSIF OSMAN 30 | 1.5 Por que as instituições importam para Moçambique NENHUM PAÍS ESTÁ CONDENADO ao fracasso institucional. Mas nenhum país progride de forma sustentável sem instituições sólidas. Moçambique não é excepção. Ao longo das últimas décadas, o país enfrentou desafios profundos: pobreza persistente, fragilidade da administração pública, corrupção, centralismo excessivo, conflitos armados, dependência externa. Por detrás de muitos destes desafios encontra-se uma constante estrutural: a debilidade institucional. É cada vez mais evidente que o desenvolvimento económico e social depende, em grande medida, da existência de instituições previsíveis, eficazes e confiáveis. Sem elas, mesmo os sectores prioritários — como a educação, a saúde ou as infra-estruturas físicas — têm dificuldades em produzir resultados sustentáveis. Quando os mecanismos de contratação, gestão ou fiscalização são frágeis ou permeáveis à influência política, os recursos perdemse, a confiança pública esvai-se e os avanços tornam-se facilmente reversíveis. Durante muito tempo, Moçambique concentrou os seus esforços de desenvolvimento na expansão do acesso: mais escolas, mais centros de saúde, mais estradas. Estes investimentos forame continuam a ser essenciais. Mas, sem instituições robustas que assegurem qualidade, manutenção e responsabilização, o risco de desperdício é elevado. Por exemplo, é difícil garantir ensino de qualidade se os professores não forem seleccionados e avaliados com base no mérito. É difícil prestar cuidados de saúde dignos se a gestão hospitalar estiver sujeita a favoritismos ou má administração. É difícil atrair investimento produtivo se os contratos forem arbitrários ou os

OS I’S DO FUTURO 31 | tribunais imprevisíveis. Mais ainda: a estabilidade política, a paz e a coesão nacional — conquistas fundamentais — dependem, em última análise, da força das instituições. São elas que mediam os conflitos, protegem os direitos, asseguram a alternância democrática e promovem a inclusão social. Reconhecer a importância das instituições não implica ignorar os condicionamentos históricos que moldaram o seu percurso. Pelo contrário: é esse reconhecimento que torna mais urgente o esforço de reforma. Moçambique precisa, hoje, de instituições à altura dos desafios do século XXI — capazes de servir uma sociedade cada vez mais informada, diversa e exigente. Este livro parte da convicção de que o futuro do país depende da solidez das suas instituições. Por isso, propõe-se a olhar de frente para o estado actual dessas instituições, compreender os seus bloqueios, e identificar caminhos realistas para o seu reforço. O próximo capítulo dá início a esse exercício, recuando às origens do Estado moçambicano para entender como nasceu o actual modelo institucional — e por que razão continua a marcar, ainda hoje, o nosso presente.

Resumo do Capítulo 1 Este capítulo explorou a importância central das instituições na construção de qualquer nação — não apenas como estruturas formais do Estado, mas como alicerces invisíveis que moldam comportamentos, definem regras e orientam o desenvolvimento. Os principais pontos a reter são: • As instituições são mais do que edifícios ou órgãos públicos: são o conjunto de regras formais e informais que organizam a vida em sociedade (1.1). • As Regras formais incluem constituições, leis e regulamentos; as informais abrangem normas culturais, práticas tradicionais e costumes sociais — com destaque especial para o papel das instituições tradicionais em contextos como o moçambicano (1.1). • As instituiçõesmoldamcomportamentos, reduzemincertezas, criam incentivos e regulam interacções económicas, políticas e sociais (1.1). • Distingue-se entre instituições inclusivas (que promovem participação ampla, justiça e confiança) e extractivas (que concentram poder e riqueza em elites) (1.2). • A análise de Acemoglu e Robinson é usada como referência crítica: reconhece-se a utilidade da sua distinção conceptual, mas sem adesão cega ao modelo democrático liberal ocidental (1.2). • São apresentadas alternativas ao caminho único de institucionalização, com exemplos como Singapura, China e Vietname, bem como os chamados “déspotas esclarecidos” (1.3). • As instituições influenciam a qualidade da liderança, a prestação dos serviços públicos, a cooperação social e os trajectos de desenvolvimento económico e social (1.3). • O progresso sustentável de Moçambique depende do reforço das suas instituições — num processo que deve respeitar a história, o contexto e os valores próprios do país (1.5).

Capítulo 2 Moçambique: um diagnóstico institucional COMPREENDER A IMPORTÂNCIA das instituições, como fizemos no capítulo anterior, é apenas o primeiro passo. O segundo passo é olhar com atenção e honestidade para o estado concreto das instituições em Moçambique: como surgiram, como evoluíram e como funcionam — ou deixam de funcionar — hoje. Este capítulo propõe-se a fazer esse diagnóstico. Mas fá-lo com uma abordagemconsciente das circunstâncias históricas e estruturais que moldaram o Estado moçambicano. Longe de qualquer condenação moral, o objectivo aqui é entender por que razão o país tem enfrentado dificuldades em consolidar instituições fortes, inclusivas e eficazes — e o que isso significa para o seu desenvolvimento. Começamospor recuaràsorigens (2.1): omomentoda independência e a necessidade urgente de construir um Estado funcional a partir de estruturas coloniais desajustadas. Analisamos, depois, as grandes transições e reformas que marcaram o percurso institucional do país (2.2) — incluindo os efeitos da guerra civil, dos acordos de paz

ASSIF OSMAN 34 | e da liberalização económica. A terceira secção examina o presente (2.3), com os seus avanços e bloqueios, procurando capturar as ambivalências que caracterizam o funcionamento das instituições moçambicanas: modernidade legal, por um lado, práticas informais e desconfiança social, por outro. A seguir, discutimos os desafios estruturais mais persistentes (2.4), como a captura institucional, a frágil separação entre Estado e partido, e a normalização da disfunção. Por fim, fechamos com uma reflexão sobre a urgência de repensar (2.5), com realismo e coragem, o modo como o Estado se organiza, se relaciona com os cidadãos e se prepara para o futuro. Este capítulo não tem como finalidade apresentar soluções — isso será feito no capítulo seguinte. O que aqui se pretende é lançar um olhar rigoroso, mas construtivo, sobre as instituições que herdámos, mantivemos, reformámos e, por vezes, deixámos degradar. Só conhecendo bem o terreno é que poderemos, com responsabilidade, redesenhar o caminho. 2.1 As origens: independência, urgência e centralização A HISTÓRIA INSTITUCIONAL de Moçambique não começou em 1975, mas foi nesse ano que o país passou a ter a possibilidade — e a responsabilidade — de construir instituições próprias, moldadas pelos seus próprios valores, necessidades e projectos colectivos. O ponto de partida, no entanto, foi particularmente difícil: um país recém-saído do domínio colonial, com níveis altíssimos de

OS I’S DO FUTURO 35 | analfabetismo, quase sem quadros nacionais formados, e com uma estrutura administrativa herdada que, embora funcional, estava desenhada para servir os interesses da metrópole — e não para sustentar umEstado soberano ao serviço de todos os moçambicanos. O Estado moçambicano nasceu com uma imensa ambição, mas com instrumentos extremamente limitados. O modelo de administração herdado era centralizador, autoritário e profundamente segregador. Em vez de garantir serviços públicos universais, visava o controlo e a exploração. A estrutura existia, mas estava orientada para excluir e dominar, não para integrar e desenvolver. Ao assumir esse legado, o novo Estado moçambicano não teve nem tempo nem capacidade para o transformar profundamente. Com poucos quadros nacionais disponíveis e num ambiente de enorme instabilidade, o que se fez foi, na prática, adaptar esse aparelho herdado a uma nova legitimidade política, sem conseguir reconfigurar a sua lógica de funcionamento de forma estrutural. Neste contexto, a centralização do poder não foi apenas uma opção ideológica — foi também, em grande medida, uma resposta pragmática à urgência da organização estatal. Sem presença efectiva em grande parte do território, sem tradição de administração pública independente, e num ambiente global marcado pela Guerra Fria, a concentração de decisões no centro serviu, num primeiro momento, como forma de garantir coesão, autoridade e controlo. A opção por um modelo socialista inspirou-se nas experiências de outros países recém-independentes e foi, na altura, vista como uma via legítima para assegurar igualdade, justiça social e controlo nacional dos recursos. Esse modelo valorizava o papel do partido comomotor do Estado, e concebia as instituições públicas sobretudo como instrumentos de mobilização, planificação e controlo. A ideia de separação de poderes, de escrutínio institucionalizado ou de autonomia dos diferentes órgãos era, na prática, secundarizada face

ASSIF OSMAN 36 | à prioridade de unidade e direcção política centralizada. Este arranque institucional moldou, profundamente, a cultura administrativa e política que se foi enraizando. A confiança na hierarquia, a valorização da disciplina, a resistência à crítica pública e a personalização do poder foram características que marcaram a actuação do Estado durante as primeiras décadas e deixaram um legado duradouro. Muitas dessas marcas persistem até hoje — não apenas por má-fé, mas porque foram normalizadas, interiorizadas e, em certos casos, até associadas à estabilidade nacional. É importante, portanto, olhar para estas origens com empatia histórica. As escolhas feitas naquele período não devem ser lidas apenas com os olhos do presente. Foram decisões tomadas num contexto de grande escassez, de intensa pressão externa e de forte desejo de soberania. Mas é igualmente importante reconhecer que os alicerces institucionais construídos sob estas condições, se não forem reformulados de forma crítica e progressiva, acabam por limitar a capacidade do país de responder aos desafios do século XXI. O Estado centralizado, vertical e politicamente dependente pode ter sido funcional para garantir sobrevivência eunidadenas fases iniciais da independência. Mas hoje, perante um país mais complexo, mais exigente e mais diversificado, esse mesmo modelo revela-se, cada vez mais, insuficiente. Daí a importância de compreendermos as origens — não para as condenar, mas para, a partir delas, projectar novas possibilidades.

OS I’S DO FUTURO 37 | 2.2 Transições e reformas: entre rupturas e continuidades A TRAJECTÓRIA INSTITUCIONAL de Moçambique não foi marcada apenas por continuidades. Ao longo das décadas, o país viveu transições marcantes que exigiram ajustes profundos — ou, pelo menos, aparentes — no seu modelo de funcionamento institucional. Algumas dessas mudanças foram impostas pelas circunstâncias; outras resultaram de compromissos políticos internos; e outras ainda foram inspiradas ou condicionadas por actores externos. Mas em muitos casos, essas reformas produziram transformações formais, sem alterar em profundidade a lógica centralizadora e vertical do poder. A mais importante transição deu-se no contexto da guerra civil e da assinatura do Acordo Geral de Paz em 1992. Esse marco obrigou o país a repensar a sua arquitectura política e administrativa. O monopartidarismo deu lugar ao sistema multipartidário. A Constituição foi revista. Foram organizadas eleições. A descentralização começou a ser discutida. As instituições passaram a operar, formalmente, num novo quadro de pluralismo e legalidade democrática. Estas mudanças foram também impulsionadas pelo novo contexto geopolítico internacional, marcado pela queda do Muro de Berlim e pelo fim da Guerra Fria, que abriu caminho a um maior predomínio dos modelos democráticos liberais a nível global. Mas, apesar dessas mudanças formais, muitos dos hábitos, estruturas e dinâmicas herdados do período anterior mantiveramse activos — muitas vezes de forma subtil, mas eficaz. Outra grande transição institucional teve início ainda antes do Acordo de Paz: foi a transição para uma economia de mercado, em 1990, marcada pela adesão aos programas de ajustamento estrutural promovidos pelas instituições financeiras internacionais. Este

ASSIF OSMAN 38 | movimento inseriu-se numa vaga global de reformas económicas que se intensificou após o colapso dos modelos socialistas na Europa de Leste, criando um ambiente internacional mais favorável às economias demercado. As reformas exigiramo redimensionamento do papel do Estado na economia, a liberalização de sectores estratégicos e a adopção de modelos de gestão orientados para a eficiência. Criaram-se agências reguladoras, introduziram-se concursos públicos, flexibilizaram-se os mercados. No entanto, a implementação dessas medidas foi, em muitos casos, superficial ou assimétrica. A lógica centralizadora e o controlo político sobre a administração pública mantiveram-se, ainda que com uma nova linguagem institucional. Como referimos anteriormente, as grandes reformas institucionais de Moçambique não foram, na maioria das vezes, o produto de processos internos de debate profundo e participação alargada. Pelo contrário, foram frequentemente respostas a crises — políticas, militares, económicas —ou a pressões externas, seja da comunidade internacional, seja de parceiros financeiros. Isso não significa que tenham sido todas negativas. Algumas trouxeram melhorias reais em áreas como finanças públicas, administração local ou transparência legal. Mas a ausência de apropriação nacional plena, e a fragilidade dos mecanismos de monitorização, fizeram com que muitas dessas reformas fossem absorvidas pela cultura institucional dominante, sem produzir mudanças estruturais duradouras. Em termos simbólicos, pode dizer-se que Moçambique passou por várias rupturas formais, sem conseguir consolidar verdadeiras transformações funcionais. As leis mudaram, as instituições foram reconfiguradas, mas a lógica do poder, a cultura administrativa e os mecanismos de responsabilização mantiveram-se, em larga medida, reféns de continuidades profundas. Esta tensão entre mudança e permanência ajuda a explicar por que razão o país apresenta, até hoje, indicadores institucionais ambivalentes: por um lado, quadros

OS I’S DO FUTURO 39 | legais modernos e instituições formalmente democráticas; por outro, práticas informais, centralismo persistente e fragilidade na aplicação das regras. Compreender esta trajectória é essencial para não cair em diagnósticos simplistas. Moçambique não é um país onde nada muda — mas é um país onde muitas mudanças não alteram o essencial. E é precisamente sobre esse essencial que precisamos de reflectir se quisermos abrir caminho para um futuro institucional mais robusto, legítimo e duradouro. 2.3 As marcas do presente: avanços, bloqueios e ambivalências PASSADAS QUASE CINCO DÉCADAS desde a independência, Moçambique dispõe hoje de umconjunto institucional formalmente estruturado. O país tem uma Constituição democrática, separação de poderes consagrada, múltiplos órgãos de soberania, tribunais judiciais, tribunais administrativos, municípios eleitos, instituições de fiscalização, autoridades reguladoras e leis relativamente modernas em diversos domínios. São ganhos relevantes, que não devem ser desvalorizados. Em certas áreas, verificaram-se progressos reais. A realização regular de eleições, o estabelecimento de tribunais administrativos, a introdução de reformas na administração financeira do Estado, o desenvolvimento de quadros legais sobre governação local, ou ainda o aumento do escrutínio público sobre os actos de governação

ASSIF OSMAN 40 | — tudo isso reflecte uma evolução institucional visível. Em vários sectores, surgiram novos actores — incluindo dentro da sociedade civil, da academia e dos meios de comunicação — que exercem pressão e contribuem para o alargamento do espaço democrático. Contudo, ao lado desses avanços, persistem bloqueios profundos. Muitos dos mecanismos instituídos funcionam com debilidades estruturais. A separação de poderes, embora garantida na Constituição, é muitas vezes enfraquecida por interferências políticas. O poder judicial enfrenta limitações orçamentais, deficiências de formação e, nalguns casos, dependência hierárquica e institucional. Os órgãos de fiscalização, como o Tribunal Administrativo ou a Procuradoria-Geral da República, actuam com constrangimentos significativos, tanto técnicos como políticos. As Assembleias Provinciais têm competências limitadas e influência reduzida sobre os grandes debates nacionais. E os municípios, apesar de eleitos, continuam fortemente dependentes do poder central, quer em termos de financiamento, quer de orientação estratégica. Mais preocupante ainda é o facto demuitas instituições continuarem a funcionar em condições de ambivalência funcional: existem formalmente, mas na prática são frágeis. A sua presença não garante eficácia, nem legitimidade. É comum encontrar órgãos que aplicam normas modernas, mas com procedimentos informais; instituições commandatos claros, mas semmeios ou autonomia para os exercer; regras sofisticadas no papel, mas pouco conhecidas ou respeitadas na realidade. A coexistência entre estruturas modernas e práticas herdadas de outras lógicas — coloniais, revolucionárias, ou clientelistas — gera uma espécie de dissonância institucional. Esta dissonância é visível no modo como os concursos públicos são organizados, como as decisões judiciais são cumpridas (ou não), como se gere o funcionalismo público, como se distribuem os investimentos, ou como se processa a relação entre Estado e cidadão. Muitas vezes,

OS I’S DO FUTURO 41 | os actores adaptam-se: cumprem os rituais formais enquanto operam, na prática, segundo códigos informais de poder, influência e sobrevivência. Esse desfasamento entre forma e substância enfraquece a confiança nas instituições. Muitos cidadãos, sobretudo nas zonas rurais, continuama ver o Estado como distante, inacessível ou imprevisível. Outros, mesmo nas cidades, sentem que os mecanismos de queixa, denúncia ou participação cívica são ineficazes ou inexistentes. Quando isso acontece, os canais institucionais são substituídos por redes informais, favores pessoais, ou, nos casos mais extremos, pela desistência ou pela confrontação. Ainda assim, é importante resistir à tentação de pintar um quadro uniformemente negativo. Há servidores públicos comprometidos, juízes corajosos, iniciativas de inovação institucional em curso, experiências locais de governação participativa e uma juventude cada vez mais consciente dos seus direitos e deveres. O desafio, portanto, não é reconstruir tudo do zero — é consolidar o que já existe, corrigir o que bloqueia e, sobretudo, garantir coerência entre a promessa das instituições e a realidade da sua actuação. 2.4 Desafios estruturais e armadilhas institucionais OS BLOQUEIOS INSTITUCIONAIS em Moçambique não são apenas resultado de más decisões políticas ou de limitações técnicas. São também consequência de desafios estruturais profundos, que moldam o funcionamento do Estado e da sociedade de forma

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